sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Irréversible - Irreversível (2002)

Entre o Inferno e o Céu

Gaspar Noé levou o seu filme a Cannes e as reacções resumiram-se a ondas de contestação. Na verdade, sem contar com "The Brown Bunny" (de Vincent Gallo), não me recordo de um outro filme na história recente que tenha sido alvo de tanta pancadaria por parte da crítica presente nesse certame. O realizador de "Irréversible" também não ajudou à festa, já que fez questão de promover a película através da atribuição de rótulos pouco convencionais. Mas não é por aí que vem mal ao Mundo. O problema é que muito se falou dos conteúdos arriscados (incluindo a infame cena da violação da personagem de Monica Bellucci, que dura praticamente 10 minutos) e do pseudo-lirismo da obra, mas o que surgiu à tona foi uma inanidade com mais olhos que barriga.

O argumento foca a atenção em três personagens: a bela Alex, Marcus (o actual companheiro de Alex) e Pierre (amigo do casal e ex-namorado dela). Quando a namorada sofre um brutal ataque num túnel tétrico, Marcus entra numa espiral de fúria e planeia uma vingança igualmente violenta. Tendo a seu lado Pierre, Marcus procura desenfreadamente o responsável pela tragédia, sendo que a sua busca o conduz a um bar chamado "Réctum" e à identidade do agressor, que responde pelo nome Tenia. Subtil, não é? Na minha opinião, Noé não faz mais do que uma tentativa desesperada de encarnar uma aura de enfant terrible, apoiando-se num filme-choque que está inacreditavelmente desprovido de alma. O realizador optou por contar a história de trás para a frente, recorrendo a uma câmera ultra-virtuosa que parece decidida a deixar o espectador à beira do vómito e a uma banda-sonora irritante. Nada de muito novo no campo da opção formal, uma vez que "Memento" já fez isto e com resultados bem mais satisfatórios. Aliás, no caso de "Irréversible", esta solução acaba por ser simplista até à raíz: começa-se o filme no completo caos e só no final encontra-se a paz. Por outras palavras: para alcançarmos o Céu temos de passar pelo tormento do Inferno.

Os temas do filme são muito interessantes e poderiam ter desencadeado um resultado estimulante, no entanto quer-me parecer que a importância da narrativa foi posta de parte e que a suposta transgressão da estrutura formal é que assumiu o controlo do projecto. Depois, a questão do choque e da provocação tornam-se um dado quase pueril, uma vez que Noé esquece-se que tem uma história para contar e que a substância ainda é uma mais valia nos filmes. Aliada a estas falhas está a abordagem simplista das personagens: para além de raras vezes acedermos à sua complexidade emocional, rapidamente são tipificadas como que para nos facilitar o trabalho de pensar. Assim sendo, Marcus representa o vingador sem tréguas, Pierre é a consciência que a tudo assiste e Alex é a serenidade que suporta todo o mal do Mundo. É, no entanto, em Monica Bellucci que se encontra o pólo triunfante de "Irréversible". As cenas em que a actriz entra eclipsam todas as outras e confesso que raras vezes se vê uma intérprete disposta a ir a estes limites de representação, entregando-se física e mentalmente a um papel decidido a sugar-lhe toda a vida. O que ela consegue acarretar particularmente no segmento da violação é de uma bravura que não merece passar despercebida. A ela faço-lhe todas as vénias...

Outro destaque positivo diz respeito à sinceridade das cenas de intimidade entre Alex e Marcus (personagem desempenhada por Vincent Cassell, companheiro de Bellucci também na vida real). Noé nunca escondeu a influência de Kubrick e faz como que uma homenagem ao mestre, no que diz respeito à captação do espaço conjugal (tal como em "Eyes Wide Shut"). De lamentar é que, fora estes pontos atractivos, "Irréversible" se qualifique como um exercício estilístico inconsequente, com grandes ares de pretensão e alheio à dimensão humana das suas personagens.


Classificação: 1/5

13 comentários:

sonhadora disse...

Este é capaz de ser o filme que mais me chocou! Ainda me arrepio de o rever na minha mente algumas cenas!
Embora seja um filme cheio de brutalidade, eu gostei do filme...

P.R disse...

É um filme que não deixa ninguém indiferente isso é certo... Mas eu gostei. Tem alguns defeitos (tal como apontas e bem no teu texto) mas penso que alcança satisfatoriamente o que pretende.
Abraço

Joana Amoêdo disse...

Engraçado...está na lista dos meus favoritos, apesar de sentir que não o voltarei a ver. O que é certo é que, pelo que me fez sentir na sala de cinema e também pela interpretação da Belluci, o filme me marcou muito. Mas percebo a tua análise, que também me fez pensar no filme por outra perspectiva.

Loot disse...

Não tem um grande argumento nisso concordamos se fosse um filme filmado de uma forma digamos "tradicional" seria completamente banal.
Mas Noé conseguiu criar uma atmosfera deveras sufocante, por isso e pela forma como me fez sentir, gostei do filme.

Também prefiro o memento, apesar de só se tocarem no facto de começaram pelo fim.

A cena da violação é a imagem marca do filme, mas a mim chocou-me mais a cena inicial no clube. E com isto não quero dizer que a cena da violação não me chocou, apenas estou a realçar a outra.

Abraço

Anônimo disse...

Porque não meter também este no Top para o S.Valentim? ;) À sua maneira especial também o merece... Tem é que ser para um namoro para mais de 5 anos, senão acaba-se tudo nessa mesma noite.

Red Dust disse...

Poderia ser diferente, é verdade. Nasce-se no turbilhão da confusão para se ir buscar, depois, as respostas.
Mas, não gostei, apesar de ser apreciador dos trabalhos de Cassell ou Bellucci, por exemplo.

Blueminerva disse...

Irreversível. Porque o tempo destrói tudo. Porque alguns actos são irreparáveis. Porque o homem é um animal. Porque o desejo de vingança é uma pulsão natural. Porque a maior parte dos crimes ficam impunes. Porque a perda do ser amado destrói como um golpe frio. Porque o amor é uma forma de vida. Porque num mundo perfeito o túnel vermelho não existiria. Porque as premonições não mudam o curso das coisas. Porque o tempo revela tudo... o melhor e o pior.
Em 2002, O festival de Cannes foi abalado pelo choque. Duas sequências de choque, e uma das propostas mais estimulantes da competição, fizeram de "Irréversible" de Gaspar Noé, um dos filmes incontornáveis da competição.
A absoluta crueza de "Irréversiber", que perpassa na violência extrema de algumas cenas, na fabulosa interpretação de todo o elenco e numa câmara que percorre freneticamente os locais de acção consegue fazer uma caracterização fantástica de cada uma das personagens bem como reproduzir com extrema fidelidade a atmosfera dos cenários, incutindo assim uma densidade dramática, quase sufocante ao enredo. "Irreversível" é um filme tremendamente difícil de assistir, mas se aguentar os primeiros 15 minutos é provável que aguente o que virá em seguida. O filme desperta de tudo um pouco, curiosidade, náusea, crueza, choque, confusão, percepção, apreciação, nó no estômago, revolta, compaixão, redenção...
Podemos falar do choque brutal nas cenas iniciais (finais), mas será injusto que se negue a "beleza" da cena. A intensidade é cortante. Sente-se ódio e repulsa. E que melhor maneira de se passar uma mensagem? Não será este um dos objectivos primordiais do cinema???
Um abraço

Cataclismo Cerebral disse...

Sonhadora: A forma como aborda a violência é de louvar, mas não me despertou os meus sentimentos ao máximo devido à fragilidade do desenvolvimento humano.

P.R: Acho que havia aqui material muito bom para um grande filme, mas acabou tudo por cair por terra.

Debbie: A Monica merece todos os aplausos. Ela defende bem um filme recheado de falhas.

Loot: Aprecio a diversidade de opiniões :) E logo num filme como este, que atiça as as paixões e ódios. Devo dizer que as cenas de violência estão muito bem filmadas (e são corajosas, acima de tudo). Mas o argumento... isso é que me lixa... Havia aqui material para obra-prima.

Pedro: Sim, este só entra para a lista dos namoros sólidos. Todos os outros terão que esperar ;)

Red dust: Concordo. Também os admiro enquanto actores e conheço-lhes o potencial, daí a frustração de vê-los a trabalhar com tão pouco suporte dramático.

Blueminerva: Antes de mais, parabéns pelo comentário! Exprime muito bem a tua opinião e já sabes que aqui tudo é válido. Mas seria desonesto se dissesse que me tocou no âmago... Eu sou grande admirador de filmes contra-corrente (dos fortes então...), quem conhece minimamente o meu blog já se apercebeu disso. No entanto, nem tudo o que é produção marginal é bom. E Irréversible peca por não deixar fluir o humanismo das suas personagens, que creio ser um ponto fundamental para que a história chocasse com inteligência. Percebo a mensagem do filme e gosto dela, mas não simpatizo com a sua materialização cinematográfica. As cenas de violência são um acto de bravura por parte de Noé, mas poderiam estar revestidas com mais espessura humana (e aí o impacto seria bem melhor). É apenas o que sinto...

Abraços!

Anônimo disse...

Vi-o uma vez e gostei, mas não sei se o acharia tão interessante num revisionamento. Gostei da vertente formal e a cena da violação não me marcou assim tanto porque já a esperava. Mas acho que merece mais do que 1/5, mesmo assim.

Pedro Pereira 77 disse...

Apesar de concordar contigo, quanto a muitas das lacunas da história... tenho que dizer, que 1/5 é capaz de ser mau demais para o que filme foi capaz de mostrar

Cataclismo Cerebral disse...

Gonn1000: Vi-o logo na altua em que estreou e, num 2º visionamento, a opinião mantém-se.

Hallowee77: Aborrece-me a pretensão de Noé e o facto dele não ter sabido explorar o conteúdo que tinha em mãos (e que era bem interessante, diga-se de passagem). Daí a má nota!

Abraços!

Anônimo disse...

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