terça-feira, 1 de julho de 2008

Dead Man - Homem Morto (1995)

Jornada para a Morte

Fascinante pérola existencialista dos anos 90, injustamente subvalorizada e esquecida. Jim Jarmusch celebra em Dead Man a revisitação do género querido do cinema clássico americano: o Western. Só que em vez de se contentar com a transposição dos códigos narrativos inatos a esse género e com o mero decalque da sua simplista atitude formal, Jarmusch reinventa-o e apresenta-nos um Western pós-moderno absorto numa metafísica arrebatadora, em simbologias desconcertantes e num acérrimo desencanto filosófico .

Filmado num belíssimo preto e branco (da responsabilidade de Robert Müller), Dead Man relata o árduo percurso físico, emocional e espiritual do jovem William Blake que, na segunda metade do século XIX, se dirige para a cidade de Machine em busca de um emprego como contabilista numa muito conhecida fábrica metalúrgica. Uma vez lá chegado, é maltratado pelo director daquela empresa familiar e posto na rua sem qualquer tipo de decoro. Ao errar pela pequena cidade "doentia", Blake trava conhecimento com uma afável ex-prostituta, com quem acaba por passar a noite. Mas o ex-amante da rapariga aparece e, num acesso de fúria, dispara mortalmente sobre ela, acabando por ferir também Blake. Este reage, abate o homem e foge sem destino. Às portas da morte e contando apenas com a ajuda de um índio (que alerta o contabilista para o facto de partilhar o nome com o famoso poeta visionário), Blake fica a saber que o homem que matou é o filho do empresário que o rejeitou, e que este mandou três assassinos no seu encalço...

Dead Man é uma galvanizante parábola sobre a Morte e uma carta de pessimismo em relação ao Homem e às suas acções inconsequentes. O filme tem um argumento tão rico que permite as mais estimulantes leituras: pode ser visto como o salutar encontro de um homem com a sua espiritualidade, a necessidade de fugir de contextos conspurcados (neste caso, a cidade) e alcançar a transcendência individual num qualquer lugar mais "puro", o agarrar a vida mesmo quando esta teima em nos escapar, ... Esta complexidade de interpretações torna Dead Man num objecto lírico irrepreensível, que foge aos lugares-comuns quer do cinema de massas, quer do dito cinema independente (que também os tem, é preciso dizer). Jim Jarmusch consegue aqui uma fita de inegável beleza etérea que encerra um paradoxo algo redundante, mas intenso: é no processo da morte certa que Blake saboreia como nunca a vida que lhe passou ao lado.

A composição musical de Neil Young é um pouco questionável, mas a verdade é que ajuda a acentuar o clima de estranheza veiculado pelo filme e confere-lhe uma identidade muito própria. Dead Man pode não ser consensual, mas quando alcança o nosso âmago, torna-se automaticamente uma referência do bom cinema arty dos anos 90.


Classificação: 4/5

7 comentários:

Blueminerva disse...

Gostei muitíssimo desta película de Jim Jarmusch. A tua crítica está soberba e não me parece que possa acrescentar mais nada.
Um abraço

Hugo disse...

Sou fã de diretores autorais e originais...gente como Shyamalan, John Carpenter, Tim Burton e Jarmusch é um deles. Este "Dead Man" é uma história originalíssima, com ótimo Johnny Depp e um bela fotografia e trilha sonoro, como vc escreveu.

Abraço

Loot disse...

"That weapon will replace your tongue. You will learn to speak through it and your poetry will now be written with blood."

Gosto muito deste, o primeiro que vi de Jim Jarmusch.
Excelente texto, é sem d+uvida um filme de grande beleza e sensibilidade.

Abraço

spring disse...

Um filme memorável com um novo olhar sobre o "western".
Abraço cinéfilo
Paula e Rui Lima

Cataclismo Cerebral disse...

Blueminerva: Obrigado ;) É um filme muito bom, mas algo marginalizado. É pena...

Hugo: Tem valores muito bons, se bem que a banda-sonora se torne, a espaços, um pouco cansativa. Ainda assim, tem personalidade.

Loot: Obrigado. Essa frase é mítica! E Dead Man é um poço de sensibilidade e significados.

Rui Luís Lima: É um western atípico; de Jarmusch só podia vir algo assim!

Abraços

Luís Mendes disse...

Um filme muito bem concebido.
Excelente desempenho de Deep (para não variar), excelente realização, excelente banda sonora... até tivemos direito ao Iggy Pop no elenco. ;)

Muito bom filme.

P.S.Gostei da sua crítica.

HLM disse...

Decidi ver o filme após ler a sua crítica.
Excelente. Uma pequena peça de arte (desconhecida como diz).

Obrigado.