Às Portas do Paraíso
Richard é um aventureiro por natureza, que pretende passar um tempo de qualidade na Tailândia. Este backpacker americano, cuja filosofia de vida se orienta pelo hedonismo e pela exploração, dá de caras com um lunático toxicodependente que lhe disserta sobre uma praia paradisíaca ainda no segredo dos deuses. Quando o mapa desse local idílico chega às mãos de Richard, este decide convencer um simpático casal de franceses a embarcar numa viagem de exploração com ele. Munidos de poucos bens materiais, os três jovens atiram-se à aventura e descobrem a estância balnear dos seus sonhos, onde uma comunidade peace and love auto-suficiente reside em condições muito rudimentares, mas também aparentemente harmoniosas. Acontece que o Paraíso não tarda a apresentar o outro lado da moeda, e Richard e os amigos cedo chegam à conclusão que aquela perfeição geográfica apresenta máculas internas muito perigosas.
The Beach é uma adaptação do livro de culto de Alex Garland, e foi uma aposta pessoal de Leonardo DiCaprio no período pós-Titanic. Atrás das câmaras esteve Danny Boyle, o homem que assinou um dos títulos mais emblemáticos dos anos 90: Trainspotting. A produção de The Beach esteve envolta em polémica desde o início: o trabalho da equipa de filmagens levou a que se efectuassem algumas alterações estruturais nos locais onde o filme foi rodado e simultaneamente ergueram-se as vozes de alguns detractores que afirmavam que este seria um projecto de vaidade por parte de DiCaprio, como forma de inverter a imagem romântica amplamente disseminada por Titanic.
Polémicas à parte, ainda estou para compreender o porquê de tanto asco em relação ao filme, quer por parte do público, quer por parte da crítica especializada. É verdade que há aqui algumas falhas, sobretudo ao nível da estrutura formal, que deveria ter sido equacionada com maior seriedade e evitado algumas ressonâncias pop mais corriqueiras. Mas fora isto, e sem ser transcendente, o saldo de The Beach é francamente positivo. Trata-se de um objecto de cinema muito estimável, bem filmado e que apela ao espírito traveller adormecido dentro de cada um de nós. Não é, de todo, o desastre que muitos dizem. Muito menos corroboro a teoria de que se trata de um festim exótico de DiCaprio para validar a sua amplitude dramática (quando na verdade ele é alguém que dispõe de um leque com as mais variadas emoções, senhor de um imenso talento injustamente prejudicado pelo fenómeno Leomania que tardou em se desvanecer).
Enfim, voltemos ao essencial: The Beach é, contas feitas, uma elucubração desencantada sobre a eterna utopia do retorno a um estado natural, alheio a quaisquer restrições das sociedades civis e supostamente longe da perversidade do Mal. Explora-se aqui, com acuidade, o ideal de paraíso que acaba por ser conspurcado pela mão humana, o que conduz inevitavelmente à perda da inocência (e liberdade) daquela realidade tão alternativa. Até esse ponto, o filme é uma parábola vertiginosa sobre o Homem a imiscuir-se na natureza, com o risco acrescido dessa entrega poder conduzir a mente a níveis quase dantescos, tal é o desnorte causado pela perda de coordenadas emocionais e sociais. Exemplo disto é a condição alucinada e alienada de Richard aquando da sua marginalização: nessa altura dá-se um choque entre o universo selvagem da ilha e as influências culturais das sociedades modernas. Esse duelo titânico entre forças distintas converte então Richard numa espécie de action-figure computadorizada e a ilha num espaço virtual, naquela que será porventura uma das cenas mais fabulosas do filme.
Em nota de desabafo: sempre achei curioso o valor simbólico do período em que The Beach foi produzido. Afinal, estávamos prestes a abraçar todas as possibilidades de um novo milénio, mas o imaginário dessa era de apoteose das novas tecnologias teimava em dominar o pensamento de todos aqueles que privilegiavam um estilo de vida mais simples e o mais perto possível do natural. Intencionalmente ou não, o filme acabou por reflectir essa preocupação mais ou menos generalizada...
Classificação: 3,5/5