sábado, 31 de maio de 2008

American Splendor (2003)

Comics de uma Vida

Harvey Pekar, um neurótico com uma existência a roçar o caos, acumula relações falhadas, sobrevive numa casa em pantanas, colecciona discos antigos e tem um emprego não muito estimulante como arquivista. Entre uma e outra obsessão, Pekar decide auto-publicar uma revista de banda-desenhada chamada American Splendor, onde lhe é permitido inscrever e satirizar os malabarismos do seu quotidiano. Com a ajuda essencial do artista Robert Crumb, o homem comum da classe média americana passa assim a debruçar-se sobre as inquietações que o perseguem, a difícil conquista do amor, a formação de uma família e a sua luta contra uma doença devastadora.

Muito mais do que uma comédia offbeat sobre um eterno looser que não se importa de o ser, American Splendor é um brilhante retrato da obra e personalidade de um génio depressivo da cultura underground que encontrou na publicação das suas próprias comics a fonte de expressão artística máxima. O filme respeita inteiramente os moldes das BD's, integrando até essas especificidades na sua construção narrativa (há cenas que se deixam dominar pela estética e layout desse universo, com as personagens a surgirem desenhadas e com balões de texto a descrever o que se passa), o que resulta num delírio visual criativo.

Mas a dupla de realizadores não está interessada em traçar mais um biopic convencional de um artista alternativo, mesmo que este disponha de artifícios visuais que o distingam dos restantes. O inovador e interessante é que Shari Springer Berman e Robert Pulcini permitem que o verdadeiro Harvey Pekar faça alguns interlúdios para comentar determinadas situações ou até a performance de Paul Giamatti, que o interpreta de forma poderosa. No entanto, não é só Pekar quem brilha: também os outros visados na história têm tempo de antena para fazer as suas aparições e dizer de sua justiça.

Goste-se ou não de Pekar e do seu trabalho, a verdade é que American Splendor (um fulgurante sucesso indie que se fartou de arrecadar prémios) consegue conquistar pela sua veia criativa pululante, pela dose de comédia ácida e weird e ainda pelos seus momentos melodramáticos cativantes. É certo que a irreverência no campo formal compõe o ramalhete, mas o grande trunfo está mesmo no delicioso argumento. E no par de interpretações principais, da responsabilidade do já citado Giamatti e da subvalorizada Hope Davis.


Classificação: 4/5

quinta-feira, 29 de maio de 2008

Desafio...

"Life is what happens to you while you're busy making other plans".

Acedi ao desafio da Betty Coltrane. O desafio consiste em arranjar uma frase que nos descreva e uma imagem que suporte essa mensagem. A frase deve conter o menor número de palavras possível (6 é o ideal).

Decidi escolher esta célebre frase de John Lennon, porque é um lema que me tem acompanhado ao longo dos anos. Lembra-me que devo apreciar todos os momentos da minha vida, as pessoas que fazem parte dela e afastar-me um pouco do caos, preocupações e hesitações que me possam constranger.

Passo o desafio a:

quarta-feira, 28 de maio de 2008

Planet Terror - Planeta Terror (2007)

A Noite dos Mortos-Vivos

Quando uma estranha epidemia se começa a alastrar pela cidade, infectando os seus habitantes e transformando-os em zombies assassinos, então é altura de pôr as pernas a andar! Esta tarefa é particularmente difícil para Cherry, uma bela bailarina de striptease cuja perna foi arrancada sem dó nem piedade num infeliz incidente numa estrada. Apenas Wray, um antigo amante da dançarina e um expert no manejar de armas, a poderá salvar de todo o caos instalado. A partir do momento em que o número de infectados aumenta exponencialmente, Wray e Cherry decidem reunir um pequeno grupo de sobreviventes, enfrentar os ataques ferozes que surgem de todos os quadrantes e fugir para algures onde a segurança seja um dado adquirido.

E eis que o impensável aconteceu: Planet Terror, a outra metade do projecto Grindhouse a cargo de Robert Rodriguez, não só não perde na comparação com a empreitada de Quentin Tarantino (Death Proof), como na verdade consegue ser um pouco superior a esse segmento. Este facto constitui uma enorme supresa, tendo em conta que nunca tive o trabalho de Rodriguez em grande consideração. A sua insistência em privilegiar um certo cinema cartoonesco, sem qualquer tipo de substância, com argumentos esburacados e minados de clichés, nunca me foi apelativo.

Desta vez o vento soprou-lhe de feição: o realizador mexicano apreendeu a natureza do género sobre o qual iria operar, conjugou-a com as suas leis cinematográficas e assim conseguiu transpor os códigos do conceito Grindhouse com maior eficácia do que o autor de Reservoir Dogs. Planet Terror revela-se uma diversão contagiante, um guilty pleasure que saceia a nossa dimensão mais endiabrada ou até mesmo infantil. Era isto que se pretendia desde o início: um passaporte para um universo xunga que se coaduna com o espírito mais pueril daqueles que aceitam de antemão as regras deste jogo tresloucado. Quem não se identifica com os propósitos da jogada, é favor ficar de fora!

Visualmente mais imperfeito e retro (o filme parece realmente saído dos confins dos anos 70), Planet Terror apresenta-se também mais divertido, trashy e com muito mais gore do que o seu "irmão". Neste batido que faz as vénias aos filmes de exploitation que tão descaradamente invoca existe ainda uma piscadela de olho às marcas autorais de gente tão ilustre como John Carpenter e George Romero. E só apetece dizer que bem que este aglomerado de influências convive. O humor sem concessões é delirante (sem esquecer os one-liners deliciosos que moram aqui) e a noção de auto-indulgência é um factor que aumenta ainda mais a simpatia para com o filme. Este desfile de zombies e de sexy girls à beira de um ataque de nervos conta com a presença insinuante de uma Rose Mcgowan decidida a colocar a sua Cherry no catálogo das figuras icónicas do cinema do século XXI.

Por último, um tirar de chapéu a Rodriguez pela boa gestão dos desafios a que se propôs: não só escreveu e realizou o filme, como compôs a banda-sonora e esteve à frente da direcção de fotografia. Muitas tarefas, mas uma aventura bem-sucedida.


Classificação: 3,5/5

terça-feira, 27 de maio de 2008

RIP Sydney Pollack (1934 - 2008)

Fã confesso do período clássico do cinema hollywoodesco, Sydney Pollack dominou a arte do storytelling com uma perícia que serve de lição a todos aqueles que amam o cinema. As suas funções de actor, produtor e realizador permitiram-lhe desempenhar um papel activo na reinvenção de diversos géneros, ao mesmo tempo que lhe deram a oportunidade de participar em projectos de qualidade superlativa. Sempre atento às mutações da era contemporânea, Pollack nunca se esqueceu, no entanto, da importância vital da captura da sensibilidade das suas personagens. O seu legado é um marco fundamental constituído por obras inteligentes, sedutoras e inesquecíveis.

Alguns títulos de Pollack enquanto realizador:

- A Intérprete (2005)
- Encontro Acidental (1999)
- A Firma (1993)
- África Minha (1985)
- Tootsie - Quando Ele era Ela (1982)
- A Calúnia (1981)
- O Cowboy Eléctrico (1979)
- Os Três Dias do Condor (1975)


Alguns títulos de Pollack enquanto produtor:

- Michael Clayton (2007)
- Assalto e Intromissão (2006)
- Heaven - Por Amor (2002)
- O Talentoso Mr. Ripley (1999)
- Sensibilidade e Bom Senso (1995)
- Os Fabulosos Irmãos Baker (1989)
- Viver de Novo (1991)


Alguns títulos de Pollack enquanto actor:

- Michael Clayton (2007)
- A Intérprete (2005)
- De Olhos Bem Fechados (1999)
- Maridos e Mulheres (1992)
- O Jogador (1992)
- Tootsie (1982)

sexta-feira, 23 de maio de 2008

Indiana Jones and the Kingdom of the Crystal Skull - Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal (2008)


No ano de 1957, em plena Guerra Fria, Indiana Jones volta ao hábito. Desta feita, o destemido arqueólogo e erudito professor universitário envolve-se em confrontos com temíveis agentes soviéticos (liderados pela tirânica Irina Spalko) enquanto busca a Caveira de Cristal de Akator, um objecto arqueológico muito apetecível. Ao lado do Dr. Jones encontram-se Mutt Williams(um jovem rebelde que mescla Elvis Priesley e o Marlon Brando de The Wild One) e a regressada Marion Ravenwood, que irão partilhar com o famoso arqueólogo uma aventura recheada de perigo, imprevisibilidade e acção.

Primeiro aspecto a ressalvar: nunca fiz nem nunca farei parte da franja de detractores de Steven Spielberg, que vilipendia (de forma muito injusta, a meu ver) o realizador pela sua nobre capacidade de criar obras de qualidade eminentemente populares. Segundo aspecto a ressalvar: a verdade é que os espectaculares resultados conseguidos por Spielberg com os três primeiros filmes da saga Indiana Jones (que energicamente revitalizaram o género de aventuras e estabeleceram a iconografia de um herói carismático) não se repetem neste novo tomo, que desilude em toda a linha. Vejamos: o argumento padece de uma fraca exploração, o conceito de ameaça foi por água abaixo, muitas cenas roçam involuntariamente o ridículo e algum do realismo presente nas sequências de acção de outrora é substituído pelo CGI mais desalmado destes dias do nosso descontentamento. Fica a triste confirmação: nem sempre é saudável ressuscitar um imaginário que já foi convenientemente aprofundado.

Tão mau quanto isso é o confirmar que as vozes que se levantaram acusando o filme de seguir uma estrutura de jogo de computador estão mesmo correctas. Mais do que obedecer a uma linguagem estritamente cinematográfica, Indiana Jones and the Kingdom of the Crystal Skull parece esforçar-se no sentido de assegurar que possui o potencial necessário para vingar na posterior rentabilização no mercado de videojogos. Dito de outro modo: esta nova realização de Spielberg usa e abusa dos efeitos especiais em longas cenas que muito devem à estética desse universo lúdico, soando tudo demasiado a falso e a mera desculpa para desbravar novos territórios assim que o filme sair de exibição. Esta decisão é por tudo lamentável, tanto mais que a aura clássica e artesanal da saga não se conjuga com a artificialidade das imagens geradas pelas tecnologias dominantes. Este fogo de artifício digital corrompe na íntegra a essência das aventuras do lendário herói e tristemente aproxima o filme de um desses produtos rotineiros que quase todas as semanas advêm de um qualquer estúdio de Hollywood.

No campo das interpretações, o saldo também não é lá muito estimulante: apenas Harrison Ford (que volta a incarnar o Dr. Jones com a energia que lhe é reconhecida) e Shia LaBeouf se encontram a alto nível, num confronto geracional bem pensado. Karen Allen regressa mas não consegue recuperar a garra da prestação que deu no filme original; Ray Winstone é subaproveitado e John Hurt e Cate Blanchett são confrangedores. Especialmente a última, que compõe uma vilã pífia, infestada de maneirismos e possuidora de um corte de cabelo e fato mais ameaçadores que ela própria. Esta é a pior interpretação da actriz australiana, dona de uma carreira praticamente imaculada.

Apesar de num ou noutro momento mais entusiasmante surgirem as inevitáveis referências que apelam à nossa eterna cumplicidade, o facto é que este Indiana Jones and the Kingdom of the Crystal Skull se resume a um mau trabalho de revisitação, conduzido de forma indiferente por um Spielberg confuso em relação à arte do storytelling que sempre dominou com enlevada mestria.


Classificação: 1,5/5

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Reservation Road - Traídos Pelo Destino (2007)

Encontro Acidental

Que tremenda decepção... Reservation Road era um dos títulos pelos quais nutria expectativas bastante elevadas. Afinal, este era o filme que tinha tudo para triunfar em absoluto: para além de adaptar o romance de John Burnham Schwartz (que participou na escrita do argumento), tinha ao seu inteiro dispor o talento de Terry George (o realizador do muito bom Hotel Rwanda) e um daqueles elencos formados no brilho do céu (Joaquin Phoenix, Jennifer Connelly, Mark Ruffalo e Mira Sorvino). Com um grau de potencial tão vasto, é estranho (para não dizer frustrante...) que o produto final seja tão insosso, banal e olvidável.

Reservation Road apresenta-se como uma tragédia familiar sobre a perda, a culpa e a complexidade da paternidade. Após um recital ao ar livre numa tarde de Verão, Ethan Learner (um professor universitário) e a sua mulher Grace dirigem-se para casa na companhia dos seus dois filhos. Ao pararem numa bomba de gasolina em Reservation Road, o pesadelo instala-se: o filho do casal é atropelado mortalmente e o culpado, numa decisão instintiva, abandona o local a alta velocidade. Consumido pela dor e pela ineficácia das forças policiais, Ethan conduz a sua própria investigação, que o poderá levar ao responsável pela morte do seu filho.

Infelizmente, nada aqui é novo. A história até arranca bem, mas cedo se percebe que as grandes questões da premissa serão exploradas de forma muito corriqueira, nunca se vislumbrando uma brisa de tentativa de originalidade. Já vimos este resultado múltiplas vezes, muitas delas até em telefilmes de qualidade duvidosa que passam a horas indecentes. O filme contém muitas cenas implausíveis e algumas coincidências no argumento soam a falso, porque facilitam demasiado os acontecimentos dramáticos. Não tenho nada contra a ocorrência de coincidências, desde que estas beneficiem a progressão da narrativa para resoluções estimulantes. Mas de facto isto não se verifica em Reservation Road.

Onde o filme bate mesmo no fundo é na sua misoginia irritante. As personagens de Connelly e Sorvino são inacreditavelmente preteridas em relação aos seus parceiros masculinos e assim sendo as actrizes têm pouco espaço para desenvolver as suas composições (especialmente Sorvino, uma das actrizes mais brilhantes de Hollywood que não tem aqui nenhum tempo de antena). Lá para o final, a intromissão do tom de thriller surge algo deslocada, porque não bate certo com os passos melodramáticos dados logo ao início. Enfim, um filme desolador e insípido com um elenco de excepção.


Classificação: 1,5/5

terça-feira, 20 de maio de 2008

Blue Velvet - Veludo Azul (1986)

Pecados Íntimos

Jeffrey Beaumont regressa à sua idílica cidade natal para visitar o pai, que se encontra num deplorável estado de saúde. Ao passar num terreno baldio, Jeffrey dá de caras com uma orelha humana ali atirada. Curioso, o jovem decide atiçar o perigo ao atirar-se à sua própria investigação, aliciando a sua inocente namorada para essa jogada. O que se vem a descobrir é um submundo de perversão, crime e violência encabeçado por um toxicodependente sádico e psicótico e pela perturbada cantora de bar cuja existência ele teima em infernizar. Por detrás da beleza atractiva e aconchegante daquela pacífica terreola esconde-se um mal que vai corroendo sem piedade...

Blue Velvet foi o filme de David Lynch que mais gente irritou (críticos e públicos, venha o Diabo e escolha...), uma vez que o realizador expôs, sem quaisquer tabus, a hipocrisia do way of life das pequenas comunidades do interior norte-americano, que sob o véu da suposta moral imaculada e da perfeição quotidiana se recusa a confirmar a existência dos seus próprios demónios interiores. A mordaz abertura do filme é de um valor simbólico que não deixa margem para dúvidas: as casas impecavelmente cuidadas, os jardins bem regados e uma paz solarenga convidam à contemplação mas encobrem uma força maligna não perceptível, que destrói as bases dessa ilusão bem engendrada.

Tendo por base uma parábola lôbrega sobre o inglório esforço de erradicação do Mal, Lynch revitaliza aqui o arquétipo do filme noir, que tão boas colheitas forneceu na época dourada de Hollywood. Mas é claro que o realizador não se esquece de conferir o seu cunho pessoal, e assim reveste Blue Velvet com camadas de sátira lancinante, decadência física e moral e perversidade ultra-chocante. Por vezes o visionamento torna-se quase impossível, tal o tempero maquiavélico a que a personagem de Isabella Rossellini está sujeita. A interpretação da actriz é quase um acto divino de total despojamento, que oscila entre o terror do Inferno e a catarse do Céu.

Pode-se dizer que o filme de 1986 foi a fonte de inspiração para séries como Twin Peaks (uma criação do próprio David Lynch em parceria com Mark Frost), Desperate Housewives e Weeds e para obras cinematográficas como Little Children, Happiness e American Beauty. O realizador viria a suavizar a imagem do interior do país com essa obra-prima de 1999 de seu nome The Straight Story, com Richard Farnsworth e Sissy Spacek.


Classificação: 4/5

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Lars and the Real Girl - Lars e o Verdadeiro Amor (2007)

A Intrusa Adorável

Uma bizarria com um grande coração, é assim que apetece definir esta surpreendente comédia dramática de Craig Gillespie! O filme indie que poderia muito bem ter resvalado para o terreno fatal da one long joke revela-se, afinal, um conto honesto sobre a tristeza da solidão e a luminosidade do optimismo. Quanto a mim, estamos perante uma das obras do ano, capaz de agradar quer a um público alternativo, quer a um público comercial...

No centro da história está Lars Lindstrom, um jovem com graves dificuldades de interacção social e hiper-sensível a um simples toque. Preso no seu próprio mundo, Lars chega à conclusão que necessita de uma reviravolta urgente. Assim sendo, não perde mais tempo e decide comprar uma sex doll via Internet, apresentando-a logo de seguida a familiares e amigos como sendo a sua namorada Bianca. De início, a perplexidade instala-se na pequena comunidade onde Lars reside, mas rapidamente os habitantes decidem abraçar aquela peculiar intrusa, integrando-a nas diversas áreas do seu quotidiano e percepcionando-a como humana.

Garanto que não há espaço para dúvidas: o mau gosto não mora aqui, o humor é acertadamente subtil e quanto a histrionismos, nem vê-los. Existe um equilíbrio notável entre as doses de comédia e de drama, convenientemente suportado por um conjunto de interpretações que se encontram em perfeita consonância com os objectivos do filme. Ryan Gosling, o actor nomeado para o Óscar com Half Nelson, é excelente na criação de um Lars avesso a maneirismos que o pudessem rotular de louco ou pervertido. A sinceridade da sua composição chega a ser comovente, fazendo com que se simpatize de imediato com Lars. Gosling demonstra, uma vez mais, que domina o underacting em todo o seu esplendor.

O registo límpido da realização conjuga-se com a simplicidade do todo e a banda-sonora em tom quirky assenta que nem uma luva na peculiaridade do argumento. Bem vistas as coisas, é possível trilhar um campo repleto de minas e alcançar uma gloriosa meta de sensibilidade!


Classificação: 4,5/5

terça-feira, 13 de maio de 2008

Red Eye (2005)

Pânico a Bordo

Confesso desde já que sou fã de Wes Craven. A admiração que nutro pelo trabalho do cineasta começou com essa obra-prima do terror chamada A Nightmare On Elm Street, o filme low- budget de 1984 que deu a conhecer ao Mundo um dos horror monsters por excelência (o terrível Freddy Krueger) e que meteu os nervos de muito boa gente em estado de alvoroço. Desde que entrei em contacto com o seu universo hermético (isto ainda em miúdo) que acompanho as suas pegadas, embora actualmente o fulgor criativo de Craven não esteja tão emproado como outrora. Ainda assim, convém relembrar que o realizador foi responsável pela inteligente reinvenção do filme slasher na década de 90, com a saga Scream. Aí, Craven divertiu-se a satirizar e a desconstruir as convenções de um género que ele próprio propagou, numa caldeirada cinematográfica que englobava genialmente o thriller, a comédia negra e o suspense.

Depois de um miserável Cursed, chegou-nos em 2005 Red Eye, um thriller de raízes hitchcockianas que se assemelha a um qualquer mito urbano oriundo do folclore norte-americano. Temos então Lisa Reisert, uma gerente de hotel que não lida muito bem com viagens aéreas. Enquanto espera pelo seu voo nocturno para Miami, Lisa confraterniza com um simpático passageiro, Jack Ripper, que vem a partilhar um lugar junto a ela no avião. O que começa como um simples flirt de aeroporto torna-se num pesadelo claustrofóbico quando, em plena viagem, Jack lhe diz que é um assassino contratado. E mais: Lisa terá de desempenhar um papel activo na sua mais recente missão, caso contrário o pai da jovem será eliminado!

Red Eye, mesmo contando com um argumento simplista e longe de ser um filme magnífico, arranca muito bem. As primeiras imagens remetem para o imaginário da comédia romântica light, mas rapidamente se percebe que as regras do jogo cedo se irão inverter. Assim que as personagens entram no avião, começa o jogo do gato e do rato, do predador e da presa, em que o thriller elimina sem perdão o romance incipiente. A asfixia devido à tensão da situação e ao minimalismo do cenário dramático é quase palpável e permite um empolar do confronto psicológico entre Jack e Lisa, o que é fascinante. A acção torna-se ainda mais sufocante para o espectador pelo facto de nenhum outro passageiro estar ciente do que se está ali a passar naquele espaço exíguo. Assim, somos como que um peão impotente que assiste a tudo de forma incrédula (somos manipulados e designados cúmplices à boa maneira do mestre Hitchcock).

Este segmento da narrativa, que corresponde à viagem de avião, está maravilhosamente arquitectado, se bem que esteja mais próximo do modelo de thriller do que de terror. A belíssima Rachel McAdams, uma das promessas do novo cinema made in USA, surpreende ao elaborar uma interpretação engenhosa, dinâmica e cheia de nuances, com uma qualidade rara para os filmes deste género. A actriz integra na perfeição o cinema de Craven, que sempre se gabou de privilegiar a destreza feminina em contextos de pura ameaça. O seu companheiro de cena, Cillian Murphy (com uma estrutura facial rigída e olhos demoníacos que impõem respeito) compõe um vilão insinuante com uma carga de inusitada elegância. O duelo incendiário entre os dois, que resulta numa química intensa, será certamente um dos maiores atractivos de todo este projecto, que só dá um passo em falso já na resolução final.

Pois é, quando a acção se transfere do avião para o cenário de Miami, Craven perde o fôlego que tão bem vinha a sustentar e cai nesse erro de facilitismo que é introduzir uma sequência banal de slasher movie de série B. Essa parte final destoa num tecido narrativo que estava a ser tão brilhantemente fabricado, mas ainda assim não é nociva o suficiente para destruir o impacto desta montanha-russa de emoções. Perdão, avião de emoções!


Classificação: 3/5

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Donnie Darko (2001)

O Fabuloso Destino de Donnie Darko

Quase não dá para acreditar que Richard Kelly, na altura com apenas 26 anos, tenha conseguido criar nesta sua primeira experiência enquanto argumentista e realizador de longas-metragens uma obra onírica desta envergadura. Naturalmente influenciado pela mente transgressora de David Lynch, Kelly consegue a proeza de ultrapassar qualquer barreira de academismo e de nunca reduzir o seu trabalho a um objecto de mero copismo exacerbado. Pelo contrário: o jovem realizador manobra com enlevada astúcia e objectividade um argumento complexo e veicula em todo o projecto a sua voz pessoal, o que lhe granjeou de imediato o respeito, um pouco por todo o Mundo, dos apreciadores de fenómenos de culto (e este é um dos títulos que melhor se identifica com esse cunho).

Filme-farol de profundeza anímica para todos os adolescentes pensantes que se recusam a diminuir aos padrões moralistas que a televisão promove de forma tão pueril, Donnie Darko foi também uma aposta por parte de Drew Barrymore, que para além de entrar como actriz, investiu na produção deste indie. Donnie Darko escalpeliza o percurso assombroso de um jovem esquizofrénico paranóico que é assaltado pela presença de um assustador coelho gigante chamado Frank, que lhe profere mensagens de índole apocalíptica. Perdido no seu próprio caos mental, Donnie tem de equacionar essa informação perturbadora com o irromper do conceito de viagem no tempo e com os destinos daqueles que mais ama.

Explicar detalhadamente a narrativa seria criminoso, tanto mais que esse exercício está interligado com uma interpretação pessoal activa. Kelly não receia a diversidade de géneros que convoca (e mostra ter unhas para tocar guitarras tão eclécticas, já que faz resplandecer o drama, a ficção-científica, a comédia, o melodrama e o thriller de forma excelsa) e filma a sua história com uma mestria tal que consegue invocar a essência dos anos 80 com a maior das facilidades. Repito: o realizador invoca literalmente essa década, não se fica apenas por um retrato mais ou menos superficial. Assim, chegam até nós os sons, as ambiências, o way of thinking e o estilo que caracterizaram esse tempo já longínquo. Até apetece dizer que Donnie Darko, pelo seu look retro, parece um filme saído directamente dos late 80's.

Bizarro e triste, este argumento com lampejos surreais vai dando conta da caminhada lírica deste teen-mártir, brilhantemente desempenhado por Jake Gyllenhaal (um dos jovens actores norte-americanos que melhor combina talento com faro artístico). O seu Donnie vai, afinal, construindo laços afectivos com aqueles com quem se cruza, marcando indelevelmente o rumo/espírito dessas pessoas, ao mesmo tempo que desmascara a hipocrisia e o marasmo reinantes no espaço social onde se move. O actor compõe a personagem com um perfeito manancial de sentimentos e com uma precisão fabulosa, pois consegue gerir bem a melancolia e a vibração interior da sua personagem (sem nunca cair naquele erro confrangedor chamado "boneco").

Inacreditável é o facto de um filme com um orçamento limitado conter cenas com efeitos especiais tão credíveis, que não só não prejudicam o todo como conferem uma sensação de estranheza arty. No plano sonoro, estamos também muito bem servidos com as presenças carismáticas de Echo & The Bunnymen, Duran Duran e Joy Division, só para citar alguns. A música, para além da sua função de desenvolvimento narrativo, ajuda a estabelecer a mood correcta nas cenas em que está presente. O grande totem neste campo é sem dúvida a fantasmagórica cover de Mad World (dos Tears For Fears), que Gary Jules levou a bom porto. A letra funciona como uma extensão dos pensamentos soturnos de Donnie. Contemplativo, depressivo e fascinante!


Classificação: 4/5

sexta-feira, 9 de maio de 2008

The Beach - A Praia (1999)

Às Portas do Paraíso

Richard é um aventureiro por natureza, que pretende passar um tempo de qualidade na Tailândia. Este backpacker americano, cuja filosofia de vida se orienta pelo hedonismo e pela exploração, dá de caras com um lunático toxicodependente que lhe disserta sobre uma praia paradisíaca ainda no segredo dos deuses. Quando o mapa desse local idílico chega às mãos de Richard, este decide convencer um simpático casal de franceses a embarcar numa viagem de exploração com ele. Munidos de poucos bens materiais, os três jovens atiram-se à aventura e descobrem a estância balnear dos seus sonhos, onde uma comunidade peace and love auto-suficiente reside em condições muito rudimentares, mas também aparentemente harmoniosas. Acontece que o Paraíso não tarda a apresentar o outro lado da moeda, e Richard e os amigos cedo chegam à conclusão que aquela perfeição geográfica apresenta máculas internas muito perigosas.

The Beach é uma adaptação do livro de culto de Alex Garland, e foi uma aposta pessoal de Leonardo DiCaprio no período pós-Titanic. Atrás das câmaras esteve Danny Boyle, o homem que assinou um dos títulos mais emblemáticos dos anos 90: Trainspotting. A produção de The Beach esteve envolta em polémica desde o início: o trabalho da equipa de filmagens levou a que se efectuassem algumas alterações estruturais nos locais onde o filme foi rodado e simultaneamente ergueram-se as vozes de alguns detractores que afirmavam que este seria um projecto de vaidade por parte de DiCaprio, como forma de inverter a imagem romântica amplamente disseminada por Titanic.

Polémicas à parte, ainda estou para compreender o porquê de tanto asco em relação ao filme, quer por parte do público, quer por parte da crítica especializada. É verdade que há aqui algumas falhas, sobretudo ao nível da estrutura formal, que deveria ter sido equacionada com maior seriedade e evitado algumas ressonâncias pop mais corriqueiras. Mas fora isto, e sem ser transcendente, o saldo de The Beach é francamente positivo. Trata-se de um objecto de cinema muito estimável, bem filmado e que apela ao espírito traveller adormecido dentro de cada um de nós. Não é, de todo, o desastre que muitos dizem. Muito menos corroboro a teoria de que se trata de um festim exótico de DiCaprio para validar a sua amplitude dramática (quando na verdade ele é alguém que dispõe de um leque com as mais variadas emoções, senhor de um imenso talento injustamente prejudicado pelo fenómeno Leomania que tardou em se desvanecer).

Enfim, voltemos ao essencial: The Beach é, contas feitas, uma elucubração desencantada sobre a eterna utopia do retorno a um estado natural, alheio a quaisquer restrições das sociedades civis e supostamente longe da perversidade do Mal. Explora-se aqui, com acuidade, o ideal de paraíso que acaba por ser conspurcado pela mão humana, o que conduz inevitavelmente à perda da inocência (e liberdade) daquela realidade tão alternativa. Até esse ponto, o filme é uma parábola vertiginosa sobre o Homem a imiscuir-se na natureza, com o risco acrescido dessa entrega poder conduzir a mente a níveis quase dantescos, tal é o desnorte causado pela perda de coordenadas emocionais e sociais. Exemplo disto é a condição alucinada e alienada de Richard aquando da sua marginalização: nessa altura dá-se um choque entre o universo selvagem da ilha e as influências culturais das sociedades modernas. Esse duelo titânico entre forças distintas converte então Richard numa espécie de action-figure computadorizada e a ilha num espaço virtual, naquela que será porventura uma das cenas mais fabulosas do filme.

Em nota de desabafo: sempre achei curioso o valor simbólico do período em que The Beach foi produzido. Afinal, estávamos prestes a abraçar todas as possibilidades de um novo milénio, mas o imaginário dessa era de apoteose das novas tecnologias teimava em dominar o pensamento de todos aqueles que privilegiavam um estilo de vida mais simples e o mais perto possível do natural. Intencionalmente ou não, o filme acabou por reflectir essa preocupação mais ou menos generalizada...


Classificação: 3,5/5

quinta-feira, 8 de maio de 2008

Bewitched - Casei com uma Feiticeira (2005)

Truques Esgotados

Nos anos 90, Nora Ephron voou a grande altura com as suas comédias românticas desempoeiradas e francamente deliciosas que muito deviam ao génio urbano-neurótico de Woody Allen. Meg Ryan era então a protagonista dessas películas (que lhe deram a oportunidade de cimentar a sua posição de namoradinha da América), enquanto Ephron geria com savoir-faire a sua condição de argumentista e realizadora de filmes lucrativos de grande estúdio. Mas a magia não está sempre ao nosso lado, e este Bewitched é a confirmação total de que as fórmulas hollywoodescas mais estafadas nem sempre resultam em filmes apelativos.

Bewitched, recorde-se, foi uma série exibida nos EUA na década de 60, na altura carinhosamente acolhida pelo público e desde então estabelecida como uma das referências mais queridas do gigantesco imaginário propagado pela televisão norte-americana. A sitcom era simples, mas doce e apelativa: uma feiticeira casada com um homem normal utilizava os seus poderes mágicos para resolver as mais diversas situações do quotidiano. O filme de Ephron pega nesse conceito e confere-lhe uma roupagem nova, actualizando-o para os dias de hoje.

O argumento gira em torno de Isabel, uma bela e afável feiticeira que se encontra entediada com a sua condição muito particular. Como quer experienciar as vicissitudes de uma vida dita normal (amor incluído), Isabel propõe-se a renegar o seu dom. Nesta altura tão crucial da sua vida ela conhece Jack Wyatt, um actor desesperado por alcançar o sucesso com a sua participação numa nova versão da série Bewitched. Como Isabel consegue imitar na perfeição o "abanar do nariz" popularizado pelo programa, acaba por ser escolhida para contracenar com Jack.

Este até poderia ter sido um daqueles projectos simpáticos, não fosse a atitude de Ephron em querer cumprir a rigor a sua agenda papal do "agradar a gregos e troianos". Esta decisão é logo à partida um mau indício, porque se percebe que aqui não vai haver a mínima vontade de arriscar. Com tanta precaução, Bewitched esbarra de imediato nas suas próprias intenções: não é uma sátira corrosiva aos bastidores do entretenimento de Hollywood, tal como não é uma comédia hilariante sobre a nostalgia da televisão. Como o filme nunca se decide sobre o que quer ser, acaba por naufragar e ir parar a uma terra de nenhures, onde o desinteresse assenta arraiais (o que se assemelha, basicamente, à morte do artista).

Para além de ser insípida e entediante, a fita sofre ainda de uma inocência quase pueril, que certamente não agradará aos públicos ávidos de alguma irreverência temática. O par principal (Nicole Kidman e Will Ferrell) bem tenta dar algum pizzaz às suas personagens, mas estão abandonados à sua própria sorte por força de uma narrativa inconsequente e sem chama. Mesmo a química entre Kidman e Ferrell, certamente o núcleo do filme, não resulta minimamente. Colorido e leve como uma pluma, Bewitched não traz nada de novo ao formato das comédias românticas e nem sequer deixa na memória um ou outro par de cenas mais conseguidas. Esta Nora Ephron tarefeira não conseguiu convencer ninguém...


Classificação: 1/5

quarta-feira, 7 de maio de 2008

A (Re)Descobrir...


The Last Supper - A Última Ceia II (1995): Este filme de Stacy Title é uma iguaria indie de alto gabarito para os apreciadores de humor negro inteligente, polvilhada de uma ponta à outra com pitadinhas de sarcasmo e ironia. Esta é a história de cinco amigos, todos alunos universitários, que partilham uma residência. Certo dia, um deles convida para jantar o desconhecido que lhe dera boleia. À mesa, o grupo de estudantes e o convidado de honra começam a trocar algumas impressões, que cedo culminam numa explosiva guerra de ideais. Resultado: a confrontação física intervém e o convidado acaba morto. A partir daí, aqueles cinco jovens idealistas e liberais decidem organizar jantares com o objectivo de eliminar os defensores de teorias políticas e sociais que eles considerem erradas... O título português contém um apêndice numérico que dá a ideia de que se trata de uma sequela. Errado, é apenas uma nota sarcástica (este filme é a Última Ceia 2 porque a Última Ceia original foi a de Cristo - ahahah!). Um fabuloso conto (a)moral que pode ser visto hoje, no canal Hollywood, às 19h30.

terça-feira, 6 de maio de 2008

TOP Trilogia Running Man

1) Artificial Intelligence: AI - Inteligência Artificial


2) Catch Me If You Can - Apanha-me Se Puderes


3) Minority Report - Relatório Minoritário




segunda-feira, 5 de maio de 2008

Holy Smoke - Fumo Sagrado (1999)

Não há Fumo sem Fogo...

Numa viagem de descoberta existencial pela Índia, Ruth (uma jovem de origem australiana) acaba por integrar uma seita religiosa new age comandada por um influente guru. Preocupados com a nova situação da filha, os pais decidem contratar os serviços de um carismático desprogramador de vítimas de seita, que incorpora na sua bagagem intelectual uma curiosa teoria dos três passos. Quando a família consegue convencer a rapariga a regressar temporariamente ao seio do lar, o desprogramador entra em acção, pronto a recuperar-lhe a essência original. A reunião no deserto entre este homem e esta mulher desagua num duelo de personalidades vincadas e numa luta de afirmação sexual quase selvagem.

Holy Smoke, escrito por Jane Campion (que acumula aqui a função de realizadora) e pela sua irmã Anne, vem no seguimento do sucesso estrondoso de The Piano e do também interessante Portrait of a Lady. Campion tenta mais uma vez impor uma das suas marcas autorais por excelência, ou seja, a verticalidade do feminino perante a presença desafiadora (ou insinuante) do masculino. Holy Smoke, não sendo grande espingarda enquanto filme, acaba por ser o projecto da realizadora onde essa característica mais se percepciona. Este facto ganha maior credibilidade se atentarmos no tom do filme, que dembula sempre num registo de crónica neo-feminista de contornos eróticos, onde a confrontação acérrima dos sexos encontra uma plataforma muito estável. No limite, Holy Smoke funciona como um estudo sobre o desarmamento sexual, onde cada sexo se tenta insurgir da forma mais impositiva possível, seja com o recurso à expressão corporal ou verbal.

Infelizmente, esta fábula contemporânea não está isenta de lacunas. O ritmo que nem sempre se rege pela fluidez e que perde um pouco o pulso da narrativa, dando azo à intervenção não muito simpática da letargia. O leque de personagens secundárias também não funciona por aí além, porque se por um lado acentua a faceta exótica da fita, por outro não é verdadeiramente importante para o desenvolvimento da história. Ainda assim, moram aqui méritos que são inegáveis, até porque no cômputo geral Holy Smoke é provocador o suficiente para colocar em cena as políticas sexuais que inauguraram o novo milénio (recordo que o filme foi produzido em 1999).

No plano das composições dramáticas do par principal é que reside o fascínio desta empreitada: Harvey Keitel e Kate Winslet são simplesmente gigantescos, devorando o ecrã e os seus papéis como poucos. Estes intérpretes de força telúrica impedem constantemente que o filme caia pela ribanceira abaixo e se desmorone em múltiplas peças. A coesão das suas performances é o núcleo que agrega tudo o que resto, permitindo que as mensagens do argumento sejam perpetuadas de forma estimulante. É verdade que o filme é mais odiado que amado (há quem o acuse de ser pretensioso) e dificilmente será alvo de reavalição crítica num futuro próximo, mas merece alguma consideração pela sua coragem. É que, embora não seja muito bom, não deixa de ser interessante.


Classificação: 3/5

sábado, 3 de maio de 2008

Miami Vice (2006)

Os Vícios da Noite

Miami Vice é a adaptação cinematográfica da famosa série homónima dos anos 80, em que uma dupla de agentes de um departamento de crime organizado se movia no sentido de capturar os mais diversos criminosos. Tudo sem esquecer a influência dos ambientes e tendências da altura. Michael Mann, o maestro por detrás de filmes como Heat e Collateral, foi o responsável pela realização do filme, numa decisão que provocou alguma surpresa. De facto, quais terão sido as motivações que levaram um realizador talentoso a actualizar em película um produto que marcou um tempo muito específico? Será que Miami Vice conseguiria equilibrar-se qualitativamente num meio audiovisual tão diferente daquele onde alcançou as suas glórias? Se a resposta à primeira pergunta continua indecifrável, já a segunda está mais que descodificada. O resultado é um falhanço artístico de proporções colossais, que destoa por completo na cinematografia do realizador.

O argumento centra-se numa missão de identificação de um grupo de criminosos, em que se inclui uma elaborada estratégia de transporte de carregamentos de droga. Ricardo Tubbs e Sonny Crockett são, como não podia deixar de ser, os polícias destacados para deslindar as arestas deste mapa de corrupção internacional. Enquanto Crockett se deixa aos poucos enfeitiçar por Isabella (a enigmática mulher de um traficante de armas e droga), Tubbs vê a sua vida pessoal misturar-se com os enleios da sua arena profissional.

É mais que sabido que Michael Mann é um sofisticadíssimo artesão das luzes e dos seus múltiplos contrastes, num jogo que se desenvolve essencialmente na intimidade da noite e onde a captação da dimensão trágica das personagens é um dado adquirido. Ele é um visionário que sabe filmar as facetas da acção como poucos, porque nunca se esquece da importância da inclusão de uma vertente afectiva/emocional nesses domínios (é essa conjugação da acção com a emoção que, em última instância, prende a atenção do espectador) . Notório é também o esforço de revitalização do género policial (que anda um pouco moribundo nestes dias) através do recurso às mais recentes tecnologias de gravação de imagem. Esta opção pelo digital permite que o filme apresente uma componente vertiginosa de quase-reportagem, alargando-se assim os horizontes no que diz respeito ao desenvolvimento da estrutura formal.

Pena é que este nível de idoneidade não se verifique no campo da narrativa. Miami Vice apresenta resoluções muito estafadas (aquela cena de emboscada que engloba uma entrega da pizza então é completamente para esquecer), para além de propagar os estereótipos mais prosaicos neste tipo de intriga. Alguns pontos de interesse são fundidos com tantos outros onde a monotonia se instala e onde o aborrecimento encontra um aconchego. Depois, a questão da química entre a dupla de polícias falha por competo: eles estão lá mas não se sente nenhuma ligação particularmente estimulante, o que é fatal para os propósitos do filme. Ainda para mais, a personagem de Jamie Foxx - o agente Ricardo Tubbs - é tão marginalizada que chega a meter dó. O grande, grande trunfo do filme encontra-se mesmo na beleza da teia amorosa que envolve Colin Farrell e Gong Li. Essa relação condenada ferve de tanto lirismo e é a personificação de um desejo quase proibido e desencantado. Desejo esse que se desenvolve com a cumplicidade de uma banda-sonora carismática...

Infeliz constatação: este é mais um objecto inconsequente, um daqueles tristes exemplos em que a forma se sobrepõe claramente ao conteúdo. Pode ser uma obra muito cool, capaz de agradar a diferentes tipos de público, mas não deixa ser banal. Que este desastre tenha ocorrido numa carreira tão límpida quanto a de Michael Mann, eis a maior das surpresas!



Classificação: 1,5/5

sexta-feira, 2 de maio de 2008

Summer Of Sam - Verão Escaldante (1999)

Os Pecados Moram ao Lado

Spike Lee tem-se afirmado ao longo da sua carreira como um dos realizadores mais preocupados em integrar as especificidades da cultura americana nas temáticas dos filmes que desenvolve. Sempre atento às mutações da sociedade contemporânea (e dos seus múltiplos intervenientes), Lee tem conseguido criar obras de inegável apelo que extravasam os limites do seu país de origem e que permitem a outras nacionalidades edificar uma noção consistente do tecido social e cultural norte-americano dos últimos tempos. Dito de outro modo: o que o realizador nos dá é toda a complexidade de um jogo dramático em que se propõe que sejamos nós a tirar as devidas ilações. Filmes como Do The Right Thing, 25th Hour, She Hate Me e Girl 6 demonstram essa capacidade inata, revelam o interesse de Spike Lee em captar as convulsões perturbadoras do presente (tendo sempre em linha de conta a sua peculiar veia artística) e mostram ainda que é possível exalar subtileza em temas tão controversos.

Summer Of Sam tem sido, desde o seu lançamento, vítima de alguma indiferença por parte de público e crítica, uma vez que é preterido em relação a outros títulos mais mediáticos da cinematografia de Lee. Curiosa contradição: o mais marginalizado é muito provavelmente um dos melhores (senão o melhor) títulos da carreira do cineasta. Escrito em parceria com Michael Imperioli (um dos protagonistas da série Sopranos) e Victor Colicchio, o filme estreou-se nos EUA em 1999; cá teve honras de exibição em 2000, o que dá vontade de dizer a alto e bom som que se trata de uma das obras-charneira desta década!

O filme passa-se em Nova Iorque, nos idos de 77, durante uma sufocante vaga de calor: um temível serial-killer, auto-intitulado Son Of Sam, diverte-se a apavorar a comunidade local, tudo devido à sua peculiar fixação em assassinar mulheres morenas em espaço público. Perante esta ameaça aterradora, os habitantes do bairro começam a escrutinar as vidas alheias, em busca de indícios que possam conduzir à captura do perturbado homem. Entre esses moradores com os nervos à flor da pele encontram-se Vinnie (um cabeleireiro egocêntrico com tendência para espetar muitas facadinhas no casamento), Donna (a mulher de Vinnie que o ama incondicionalmente e que está assim disposta a virar os olhos às inúmeras traições) e ainda Richie (um grande amigo de Vinnie e um verdadeiro alienígena naquele bairro, cuja personalidade atípica choca com os valores reinantes). Até se chegar à identidade do agressor, o Bronx será o mais explosivo palco de traições, crimes e injustiças.

Apoiado num argumento envolvente e numa cadência frenética, Summer Of Sam é um mosaico social, cultural e psicológico de índole explosiva, que reinventa com grande dose de inteligência o mito de Caim e Abel. O filme é, no limite, um genuíno bailado nocturno de corpos, desejos, inseguranças e medos, devidamente condimentado com os sons, sítios e tendências da época. Spike Lee volta a filmar as ruas, as suas leis intrínsecas e os seus peões como só ele sabe, destrinçando os labirintos de ambiguidades de forte carácter inebriante. Aliada a esta estratégia está uma outra peça fundamental que é o valor simbólico do calor: tal como em Do The Right Thing, esse factor é um dos agentes que despertam a fúria interior das personagens que parecia estar anestesiada. Até o próprio serial-killer assume uma função de gestor da narrativa, já que é ele que "incentiva" as outras personagens à acção e que se relega depois para um segundo plano.

Sem esquecer o look enérgico que se encontra muito próximo de alguns videoclips arty e que é característico do meio publicitário (onde a noção de vertigem está muito enraizada), Spike Lee faz ainda questão de realçar as capacidades performativas do seu soberbo trio de actores: o eterno secundário John Leguizamo brilha a alto nível, Mira Sorvino é um portento de sensualidade e entrega que gostaríamos de ver mais vezes no grande ecrã e Adrien Brody compõe uma espécie de martir que coloca em causa a moral perversa daquela era. Sem papas na língua, digo que este é um dos enormes filmes dos últimos anos, de um senhor da ubiquidade que é também um dos mais influentes retratistas urbanos dos dias que correm!



Classificação: 5/5