sábado, 18 de agosto de 2007

Birth - O Mistério (2004)


A Metafísica Do Amor

Um belíssimo filme metafísico, amado e odiado em partes iguais. Estamos perante uma obra fabulosa e intensamente radical. Arrisco até a dizer que Birth nem parece ser um trabalho desta época: desenvolve-se de uma forma que não se coaduna com os imperativos cinematográficos contemporâneos e encontra-se repleto de inteligência, subtileza e sugestão (algo raro de se encontrar). Estranhamente, com tantos dados relevantes a seu favor, Birth acabou por ser desvalorizado pelo público. Acredito que essa subvalorização prendeu-se com o facto do público de hoje se centrar quase exclusivamente na questão dos twists que, por muito espectaculares que sejam, não podem nunca resumir o imaginário de um filme .

Depois, alguma crítica medíocre acabou por ser tremendamente injusta ao trilhar o caminho mais perverso, acusando o filme de conter cenas extremamente chocantes (?) e de se centrar sobre o polémico tema da pedofilia (??). Muito equívoco e muita crueldade, tanto mais quanto o filme não contém cenas chocantes que envolvam o jovem protagonista, nem sequer foca a atenção na problemática do abuso sexual de menores.

Iniquidades à parte, passemos ao essencial: Birth narra a história de Anna (Nicole Kidman), uma viúva há dez anos que se cruza com um rapaz que diz ser a reencarnação do seu marido. Inicialmente, Anna não leva as afirmações do miúdo muito a sério, mas quando este começa a revelar pormenores íntimos do casal e de alguns familiares, a jovem mulher começa aos poucos a acreditar na possibilidade do seu marido estar de volta. Anna começa então a desenvolver uma relação muito profunda com a criança, que não é bem vista pelas pessoas ao seu redor.

O interessante em Birth não passa pelo descobrir se aquilo que o rapaz diz corresponde ou não à verdade; o que realmente importa é verificar as consequências que a sua presença traz para a personagem de Nicole Kidman e para o seu universo afectivo. O tema do filme não é tanto a reencarnação, mas sim a força e a dimensão da crença. No limite, Birth é um filme com uma carga religiosa pungente. A composição de Nicole Kidman é assombrosa, plena de vulnerabilidade e densidade emocional. A sua Anna é alguém que, a pouco e pouco, começa a ceder nas suas convicções e a anular a sua sólida personalidade perante o caos que se lhe apresenta. Ela segue aquele processo auto-destrutivo apenas porque se quer entregar ao amor que conhece e que nunca a abandonou, apesar da morte se ter intrometido. O argumento é aqui tão hábil, maduro e complexo que consegue sempre evitar algumas armadilhas inconsequentes que poderiam minar a sua credibilidade.

A realização é austera e elegante (evocando com grande eficácia os espíritos de Stanley Kubrick e Ingmar Bergman) e a banda-sonora, a cargo de Alexandre Desplat, pauta-se pela excelência. Uma nota final para aquele close-up que ainda hoje me persegue e que se impõe como uma das peças-chave do cinema do novo milénio!


Classificação: 5/5

7 comentários:

Carlos Pereira disse...

É um filme completamente subvalorizado, e injustamente. Birth é um prodígio de argumento, de realização, e de interpretação. E tens razão quanto ao close-up, verdadeira captação de um rosto e de uma Verdade. Um dos melhores filmes de 2004 ;)

JHB disse...

Não lhe presto tata devoção como tu mas é óbvio que foi subvalorizado, isso é inquestonável. Não consigo perceber como é possível que alguns lhe apontem tantas falhas.

Abraço

Carlos M. Reis disse...

Confesso de que não gostei, apesar da ideia atractiva e do desfecho bem conseguido.Nunca me conseguiu agarrar, mas talvez mereça um segundo revisionamento.

Um abraço!

bitsounds disse...

Kubrick é a palavra do texto que me faz ter vontade de ver o filme :)
fiquei curioso

Cataclismo Cerebral disse...

Carlos: Totalmente de acordo. Adoro quando dizes "verdadeira captação de um rosto e de uma Verdade". É o que aquele close up representa...

Jhb: Quero acreditar que o Birth vai ser alvo de revisão crítica, num futuro não muito longínquo :)

Knoxville: Pode ser que na 2ª vez o filme te diga mais qualquer coisita

Zito: Está lá a influência do mestre, isso é inegável.

Abraço

Daniel disse...

Lá estava eu ontem: ia ver um filme e até parecia que ia passar um bom bocado. Enganei-me! Temos aqui uma verdadeira obra-prima, um filme tão finamente orquestrado e tão apurado em cada pormenor que rapidamente se apresenta até nós como uma obra de arte sublime. Há nele a sensibilidade teatral de quem não foca um plano ao acaso, de quem não esquece um pormenor importante, de quem procura passar uma mensagem extremamente precisa e por isso a desenvolve ao longo de um fio condutor único que se desenrola em várias direcções. Primorosa é a escolha da imagem, da belíssima música, da articulação entre as duas, da magnífica fotografia, de planos soberbos, de interpretações penetrantes. Tudo neste filme simboliza algo, todos os seus elementos foram cuidadosamente escolhidos para servirem de representação à mensagem que se quer transmitir. Porém, a sua maior virtude, o tratamento tão analítico com que aborda o tema, é também a sua maior desvantagem: o filme não consegue - e falta-lhe esse elemento para a genialidade - ir para além da questão da reencarnação. E é uma pena. Falta-lhe o toque de Umberto Eco que o transcende por completo. Ainda assim, é uma autêntica obra-prima, um filme magnífico, terrivelmente belo (terrível, com close-ups aterrorizadores), e fica para a história do cinema - e para a história de quem o viu. É impossível ficar indiferente a um filme destes, que nos encosta à parede e quase nos obriga a reagir. Poucos filmes há que consigam de uma maneira tão intensa e perturbadora captar a nossa atenção e transmitir de uma forma clara e sem rodeios a mensagem que querem transmitir.

Abraço!

Cataclismo Cerebral disse...

Daniel: Concordo em grande parte com tudo o que disseste e quero-te felicitar pelo fabuloso comentário. Acho, no entanto, que o filme consegue extrapolar o seu lado metafísico e apresentar a frustração terrena de um amor que estava adormecido, mas não apagado. É o tema da reencarnação que vem despoletar essa frustração e também a questão da credulidade (que põe uma mulher inteligente e supostamente hiper-racional numa dúvida assombrosa). E, para mim, mais importante do que a verdadeira identidade daquele miúdo é o conjunto de reacções que a sua presença faz disparar no seio da família. Alguns estados de alma e decisões tornam-no num objecto quase religioso.

Abraço e obrigado!